" Uma bela noite, depois de tomar suas pílulas, escovar os dentes, dar comida aos gatos e conferir se aquela manchinha no braço tinha aumentado, Bernardo Manfredini, o famoso filósofo e psicólogo, simplesmente sofreu um ataque cardíaco e morreu. Assim, sem mais nem menos, ao cinquenta e três anos. Morreu e despertou alguns segundos depois. Quer dizer, só o espírito, porque o corpo continuava no chão. Ainda sem entender muita coisa, Bernardo, sempre um homem sensato, após se beliscar e tentar acordar, se deitou na cama – onde estava o seu corpo – certo de que aquilo era um sonho e que já já ele acordaria sem se lembrar de nada. Assim que se sentou na cama para deitar, uma voz grave irrompeu do outro lado do quarto, mais precisamente da sua poltrona de couro:
- Não adianta tentar dormir, você não tá sonhando. Você morreu mesmo.
Bernardo olhou e viu um sujeito com uma longa bata, sandálias de couro, barba e cabelos longos e brancos. Ou era Deus ou o Hermeto Paschoal havia invadido seu apartamento.
- Quem é você? – Indagou Bernardo.
- Deus. – Respondeu o sujeito, calmo como quem responde “dois” quando perguntado “quantos pães vai querer?”.
- Ah, claro, e quando o coelhinho da Páscoa vai chegar pra te dar uma carona?
- Olha, eu sei que você é – era – ateu ativista, mas eu sou Deus. Lide com isso.
Bernardo olhou para a cama e viu seu corpo. Levando-se em consideração que ele estava vendo o seu próprio corpo, será que era mesmo impossível que Deus existisse?
- Então prova!
- Tá.
Deus fez um gesto para que Bernardo olhasse pela janela. Em dez segundos, choveu, nevou, anoiteceu e o sol nasceu sete vezes. Parece que Bernardo havia se convencido.
- De sandalinha de couro, barbão e bata? Só faltava você ter a voz do Morgan Freeman pra ficar mais clichê.
- Pois é, eu tentei ser moderno, bermuda, terno, mas se de bata e barba branca ninguém acredita que eu sou Deus, descaracterizado eu levava uma hora pra convencer as pessoas.
- Entendi… Mas então é isso? Eu morri? E quando a gente morre, Deus vem buscar a gente pessoalmente?
- Mas é óbvio que não! Ateu é burro demais mesmo. Imagina se eu tenho tempo de buscar todo mundo que morre, um por um?
- Mas então o que que você tá fazendo aqui?
Deus se ajeitou na poltrona, cruzou as pernas e falou, solene:
- Pois é, então. Você não tinha nada no coração. Aliás, seu coração era forte como o de um touro.
- Mas então como eu morri do coração???
- Fui eu, pessoalmente.
- Você? Você me matou? Porra, você me matou porque eu era ateu???
- Puta que pariu, vocês ateus se acham o centro do universo, hein. Eu tô cagando pra vocês, tô nem aí!
Um silêncio constrangedor preenche o quarto, até que Deus fala:
- Eu queria conversar.
- Peraí, peraí. Você queria conversar?
- É. Eu queria – precisava – conversar. E como você é um filósofo e psicólogo genial, eu resolvei te chamar pra conversar.
- “Me chamar pra conversar”? Você resolveu me matar, né?
- Não vamos discutir semântica.
- Semântica??? Você me matou só pra conversar! Você é maluco???
- Você já leu o Velho Testamento?
- Não.
- Pois devia. Eu já matei muito mais gente por muito menos. Pelo menos não foi com fogo, praga, nada disso. Nem doeu.
- Nossa, eu tava certo de não acreditar em você…
- É, mas nisso você tava errado, eu tô bem aqui.
Bernardo caminha em círculos, vai até a janela e, por fim, se senta na cama.
- Bom, se eu não tô sonhando e Deus tá realmente na minha frente, o que que você queria conversar?
- Pois é, rapaz. Então, eu acho que eu errei. Tava pensando em um novo dilúvio, chuva de fogo. Sei lá, eu ando meio dramático, pensei também em um supervírus fatal ou uma invasão das máquinas.
- Mas pra acabar com a humanidade?
- Não, não, chuva de fogo pra acender os baseados na Jamaica… Porra, claro que é pra acabar com a humanidade!
- Mas por que???
- Eu tô começando a me arrepender de ter te chamado pra conversar, você é meio burro. Como assim “por que”? Tá tudo errado, tudo. A humanidade nunca esteve tão mal, não tem jeito não.
- Mas o Senhor tá falando especificamente de quê?
- De tudo. Tudo, dos pequenos problemas aos grandes problemas. O Oriente Médio se acabando em guerra, na Europa o nazismo tá voltando, na África é só guerra civil, aqui no Brasil o Tiririca é o deputado mais votado do país. Isso sem falar na porra do sorvete de baunilha que tá sempre em falta no McDonalds. Tá foda, Bernardo.
- Mas Senhor… Deus… é… eu te chamo de que?
- Senhor mesmo.
- Mas Senhor, será que não tem jeito? O Senhor não podia interceder?
- Eu tentei. E sabe o que fizeram com a minha influência? Matam judeus, matam cristãos, matam muçulmanos, tudo dizendo que é por minha causa. E ainda tem o filha da puta do Malafaia pra me foder de vez.
- É, realmente… Tá complicado.
- E antes fosse só isso. As pessoas não pensam nas outras, se ofendem o tempo todo, não se respeitam. Eu não sei mais o que fazer, sinceramente. Vou dar um control alt del pra ver se resolve. No meu computador resolve qualquer coisa.
- Mas do zero mesmo? Tipo idade das cavernas?
- Do seríssimo, não vai sobrar nada. Bom, talvez eu ajude vocês a inventar a azeitona sem caroço e aquela bolinha que não deixa a tampa da pasta de dente cair no ralo. Pra não dizerem que eu sou desumano.
- Mas Senhor, sem querer me meter no seu trabalho, mas se o senhor acabar com a humanidade hoje, daqui a uns três, quatro mil anos, tudo vai ficar igual a hoje. É a evolução, por mais que agora eu saiba que o Senhor existe, a evolução não falha. Vai tudo evoluir pro mesmo lugar, as pessoas vão inventar as mesmas coisas, fazer as mesmas besteiras. Não?
- Pode ser. Mas sei lá. Pelo menos no começo vai ser legal ver vocês evoluindo, criando comunidades, se juntando, se maravilhando com o mundo. Se der errado, eu começo de novo outra vez, e outra vez, e outra vez. Paciência.
- Você vai cansar disso de dilúvio, chuva de fogo e coisa e tal.
- Rapaz, você nunca leu mesmo o velho testamento…
- Mas sério, Senhor. Eu acho que vale a pena esperar mais um pouco. Tá tão ruim que só pode começar a melhorar.
- Sei não. Esse pessoal sempre inventa um jeito de fazer mais merda.
- Mas dá mais essa chance. Mais uns mil anos. Pro Senhor, mil anos vão passar voando.
- Mas sei lá, dá uma sensação de frustração, saca? De trabalho mal feito.
- Mas o seu trabalho foi muito bem feito! A sua parte, pelo menos, foi.
- Hum… Pode ser… Vou tentar por mais uns quinhentos anos. Eu vou me arrepender, mas vou dar mais uma chance a vocês. Até porque, do jeito que tá faltando água em São Paulo, se eu mandar um dilúvio é capaz de me elegerem pra Governador.
- Mas… Senhor… e eu?
- E você o quê?
- Eu vou ficar morto?
- Bom, se você não contar pra ninguém, eu deixo você voltar. Combinado?
- Combinado. Bico calado até porque, eu tô meio velho pra mudar de ideia e falar pras pessoas que eu acredito em Deus agora.
- Fechadíssimo.
- Só uma pergunta: eu posso escrever um livro sobre ter encontrado Deus, me converter ao evangelho e viajar pelo Brasil dando meu testemunho e ficando rico?
- Você prefere dilúvio, chuva de fogo ou praga?
- Calma, tava brincando. Falta de senso de humor… "
léo luiz - do blog entenda os homens
e você, como seria sua conversa com Deus caso isso acontecesse?
beijos e carinho, bell